“Nossa
cultura conferiu valor
absoluto ao espírito científico
A nossa cultura, a
partir do chamado Século das Luzes (1715-1789), aplicou de forma rigorosa a compreensão
de René Descartes (1596-1650) de que o ser humano é “Senhor e mestre” da
natureza, podendo dispor dela ao seu bel-prazer. Conferiu um valor absoluto à
razão e ao espírito científico.
Com
isso, se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um
conhecimento, sem necessariamente passar pelos cânones racionais. O que mais
foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade e do
universo das emoções, sob o protesto de que ele atrapalharia “as ideias claras
e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem
coração, mas funcional ao projeto da modernidade, que era – e continua sendo –
o de fazer do saber um poder como forma de dominação da natureza, dos povos e
das culturas.
Curiosamente,
toda a epistemologia moderna, que incorpora a mecânica quântica, a nova
antropologia, a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica, tem mostrado
que todo conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e
objeto estão indissoluvelmente vinculados,
às vezes por interesses escusos (J. Habermas).
Foi a
partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras
modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente, é nele que reside o
amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana
e dos direitos inalienáveis.
Isso
que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da
grandiosa cultura maia na América Central, particularmente na Guatemala. Como
não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardaram fielmente suas
tradições, que provêm dos avós, ao largo das gerações.
Participei várias vezes
de celebrações maias, sempre ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos
ventos, das montanhas, das águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas
invocações no meio de um incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.
Ouvindo-os falar das
energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era muito
afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para eles
é energia e movimento entre a formação e a desintegração que conferem dinamismo
ao universo. Eram exímios matemáticos e haviam inventado o número zero. Seus
cálculos do curso das estrelas se aproximavam em muito aos que alcançamos com
os modernos telescópios.
Dizem que tudo o que
existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, o do céu e o da Terra, que
é um ser vivo que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os
“filhos ilustres, indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos
lembram Martin Heidegger.
A essência do ser
humano é o coração, que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e
amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é para cultivar a
dimensão do coração. Os irmãos de La Salle mantêm, na capital guatemalteca, um
imenso colégio, onde jovens maias vivem na forma de internato bilíngue, no qual
se recupera e sistematiza a cosmovisão maia, ao mesmo tempo em que assimilam e
combinam saberes ancestrais com os modernos saberes, especialmente os ligados à
agricultura e a relações respeitosas com a natureza.
Apraz-me concluir com
um texto que uma mulher sábia me repassou no fim de um encontro com indígenas
maias. “Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles,
pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração, mais se
equivocará” (Popol Vuh).”.
(LEONARDO
BOFF. Filósofo e teólogo, em artigo publicado no jornal O TEMPO Belo Horizonte, edição de 19 de
fevereiro de 2016, caderno O.PINIÃO,
página 20).
Mais uma importante e oportuna contribuição para o
nosso trabalho de Mobilização para a
Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, mesma edição, caderno OPINIÃO, página 7, de autoria de DOM WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO, arcebispo
metropolitano de Belo Horizonte, e que merece igualmente integral transcrição:
“Olhares
sobre o Brasil
Os olhares sobre a
realidade brasileira, que é complexa e plural, devem ser muitos e com grande
acuidade. Uma visão estreita é incapaz de perceber as muitas necessidades, de
enxergar os caminhos que devem ser seguidos para sair das crises deste tempo.
Os olhares têm que avançar para além do território das opiniões ou das listas
de lamentações. Também não podem focalizar apenas as atribuições e responsabilidades
dos outros, como tática para se eximir das próprias tarefas. A visão míope de
um segmento pode significar atrasos em processos e graves prejuízos, com
consequências irreversíveis.
Analisar
a realidade é exercício que requer conhecimento e adequada interpretação para
configurar a indispensável corresponsabilidade de todos os cidadãos na
construção de uma sociedade solidária, alicerçada na cultura da justiça, da paz
e do respeito incondicional à dignidade de toda pessoa.
Assim,
todos estão desafiados a reavaliar seus conceitos e colaborar com as
transformações urgentes e com ações mais eficazes. Sem essa premissa, há o
risco de se supervalorizar a própria atuação, achar que já se faz muito, que os
trabalhos atendem às expectativas. Afinal, não seria pela prevalência dessa
ilusão que a política na realidade brasileira, particularmente a partidária,
convive com a incapacidade para apontar novos rumos e promover o diálogo entre
cidadãos?
Há uma
miopia crônica generalizada, salvaguardadas as exceções. Isso se comprova na
incompetência de grupos diversos para debelar processos que alimentam a
corrupção, a indiferença em relação aos mais pobres. Também é sinal da falta de
visão, nos setores público e privado, a timidez para investir em projetos
capazes de promover novas dinâmicas que contribuam para se alcançar uma
sociedade mais igualitária.
Não
basta apenas planejar bem o próprio negócio. Há um modo necessário de se olhar
a realidade por meio de valores inegociáveis, de princípios, de sensibilidade política
e cultural, que, audaciosamente, remete cada cidadão à direção do bem comum. A
partir dessa visão, as ações fundamentam-se no amor e não se reduzem às
estratégias de pequenos grupos que reforçam a segregação econômica, social,
política, cultural e até mesmo religiosa.
Assim,
os dias da quaresma oferecem oportunidade importante: a vivência da Campanha da
Fraternidade deste ano. Trata-se de exercício ecumênico que nasce da fé cristã,
nas diferentes confissões religiosas, para articular experiências e, dessa
forma, contribuir com o contexto socioeconômico, político e cultural. Quem crê
em Cristo não pode apenas usufruir das consolações espirituais ou se restringir
a arrumar os próprios ambientes, projetos e templos. É compromisso que nasce da
fé contribuir mais decisivamente na transformação da realidade.
Por
isso, os cristãos no Brasil devem, a partir da Campanha da Fraternidade 2016,
configurar uma experiência ecumênica capaz de transformar a realidade. O que se
objetiva não é a organização de bancadas no Parlamento, nas assembleias, na
simples defesa de interesses corporativos, pessoais, com fechamentos e
dogmatismos que desconsideram o diálogo indispensável em uma sociedade plural.
Busca-se agir a partir da misericórdia, que não negocia jamais a ética e a
moralidade e também não passa o trator em cima de ninguém em nome de Deus.
A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e o Conselho Nacional de Igrejas
Cristãs, na promoção da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016, com o tema
“Casa comum: nossa responsabilidade”, empenham-se na tarefa de fazer ecoar o
apelo que pede união entre os cristãos, para além de suas diferenças, em torno
da defesa e promoção da vida. O saneamento básico, no horizonte de uma
alicerçada ecologia integral, é a bandeira que se quer erguer, inspirando
outros segmentos da sociedade. Com os cristãos de mãos unidas, a realidade
brasileira pode mudar. Nessa direção, as confissões religiosas estão desafiadas
a contribuir para que a fé ilumine e inspire os olhares sobre o Brasil.”
Eis, portanto, mais páginas contendo importantes, incisivas e
oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise de liderança
de nossa história – que é de ética, de
moral, de princípios, de valores –, para
a imperiosa e urgente necessidade de profundas
mudanças em nossas estruturas educacionais,
governamentais, jurídicas, políticas, sociais, culturais, econômicas,
financeiras e ambientais, de modo a promovermos a inserção do País no
concerto das potências mundiais livres, civilizadas, soberanas, democráticas e
sustentavelmente desenvolvidas...
Assim, urge ainda a efetiva problematização de questões deveras
cruciais como:
a) a
educação – universal e de qualidade –, desde
a educação infantil (0 a 3 anos de
idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo
da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira
série do ensino fundamental, independentemente
do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação
(especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade absoluta de nossas políticas
públicas (enfim, 125 anos depois, a República proclama o que esperamos seja
verdadeiramente o início de uma revolução educacional, mobilizando de maneira
incondicional todas as forças vivas do país, para a realização da nova pátria;
a pátria da educação, da ética, da justiça, da civilidade, da democracia, da
participação, da sustentabilidade...);
b) o
combate implacável, sem eufemismos e
sem tréguas, aos três dos nossos maiores e mais devastadores inimigos que são:
I – a inflação, a exigir permanente,
competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares
civilizados, ou seja, próximos de zero (segundo dados do Banco Central, a taxa
de juros do cartão de crédito atingiu em janeiro a ainda estratosférica marca
de 410,97% para um período de doze meses; e mais, também em janeiro, o IPCA
acumulado nos doze meses chegou a 10,71%...); II – a corrupção, há séculos, na mais perversa promiscuidade –
“dinheiro público versus interesses privados” –, como um câncer a se
espalhar por todas as esferas da vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos
e comprometimentos de vária ordem (a propósito, a lúcida observação do procurador
chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato, Deltan Dallagnol: “A Lava Jato ela
trata hoje de um tumor, de um caso específico de corrupção, mas o problema é
que o sistema é cancerígeno...” – e que vem mostrando também o seu caráter
transnacional; eis, portanto, que todos
os valores que vão sendo apresentados aos borbotões, são apenas simbólicos,
pois em nossos 515 anos já se formou um verdadeiro oceano de suborno, propina,
fraudes, desvios, malversação, saque, rapina e dilapidação do nosso patrimônio...
Então, a corrupção mata, e, assim, é crime...); III – o desperdício, em todas as suas modalidades, também a ocasionar
inestimáveis perdas e danos, indubitavelmente irreparáveis (por exemplo,
segundo Lucas Massari, no artigo ‘O Desperdício na Logística Brasileira’, a
“... Desconfiança das empresas e das famílias é
grande. Todos os anos, cerca de R$ 1 trilhão, é desperdiçado no Brasil. Quase
nada está imune à perda. Uma lista sem fim de problemas tem levado esses
recursos e muito mais. De cada R$ 100 produzidos, quase R$ 25 somem em meio à
ineficiência do Estado e do setor privado, a falhas de logística e de
infraestrutura, ao excesso de burocracia, ao descaso, à corrupção e à falta de
planejamento...”;
c) a
dívida pública brasileira - (interna e
externa; federal, estadual, distrital e municipal) –, com projeção para
2016, apenas segundo a proposta do Orçamento Geral da União, de exorbitante e
insuportável desembolso de cerca de R$
1,348 trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos
(ao menos com esta rubrica, previsão de R$
1,044 trilhão), a exigir alguns fundamentos da sabedoria grega:
-
pagar,
sim, até o último centavo;
-
rigorosamente, não pagar com o pão do povo;
-
realizar uma IMEDIATA, abrangente,
qualificada, independente e eficaz auditoria...
(ver também www.auditoriacidada.org.br)
(e
ainda a propósito, no artigo Melancolia,
Vinicius Torres Freire, diz: “... Não será possível conter a presente
degradação econômica sem pelo menos, mínimo do mínimo, controle da ruína das
contas do governo: o aumento sem limite da dívida pública...”);
Destarte, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta
de recursos diante de tão descomunal sangria que dilapida o nosso já
combalido dinheiro público, mina a nossa capacidade de investimento e de
poupança e, mais grave ainda, afeta a credibilidade de nossas instituições,
negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à
pátria, ao lado de abissais desigualdades sociais e regionais e de extremas
e sempre crescentes necessidades de ampliação
e modernização de setores como: a gestão
pública; a infraestrutura (rodovias,
ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos); a educação; a saúde; o saneamento ambiental (água tratada,
esgoto tratado, resíduos sólidos tratados, macrodrenagem urbana, logística
reversa); meio ambiente; habitação;
mobilidade urbana (trânsito, transporte, acessibilidade); minas e energia; emprego, trabalho e renda;
agregação de valor às commodities; sistema financeiro nacional; assistência
social; previdência social; segurança alimentar e nutricional; segurança
pública; forças armadas; polícia federal; defesa civil; logística; pesquisa e
desenvolvimento; ciência, tecnologia e inovação; cultura, esporte e lazer;
turismo; comunicações; qualidade (planejamento – estratégico, tático e
operacional –, transparência, eficiência, eficácia, efetividade, economicidade
– “fazer mais e melhor, com menos” –, criatividade, produtividade, competitividade);
entre outros...
São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que, de maneira
alguma, abatem o nosso ânimo e nem
arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta
grande cruzada nacional pela cidadania e
qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente participativa, justa, ética, educada,
civilizada, qualificada, livre, soberana, democrática e desenvolvida, que
possa partilhar suas extraordinárias e generosas riquezas, oportunidades e
potencialidades com todas as
brasileiras e com todos os
brasileiros. Ainda mais especialmente no horizonte de investimentos bilionários
previstos e que contemplam eventos como a
Olimpíada de 2016; as obras do PAC e os projetos do Pré-Sal, à luz das
exigências do século 21, da era da globalização, da internacionalização das
organizações, da informação, do conhecimento, da inovação, das novas
tecnologias, da sustentabilidade e de um possível e novo mundo da justiça, da liberdade, da paz, da igualdade – e com equidade –, e da fraternidade universal...
Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a nossa fé, a
nossa esperança... e perseverança!
“VI,
OUVI E VIVI: O BRASIL TEM JEITO!”
-
Estamos nos descobrindo através da Cidadania e Qualidade...
-
ANTICORRUPÇÃO: Prevenir e vencer, usando nossas defesas democráticas...
- Por
uma Nova Política Brasileira...