“Sem
fé é mais difícil
Depois da política, a
religião. A sociedade brasileira parece ter, durante toda a sua existência,
balançado entre dois pólos – e nem sempre de forma equilibrada. A mistura de
negócios do mundo com compromissos com a fé gerou descaminhos e injustiças que
se tornaram matriz de muita infelicidade ao longo da história. No entanto,
parece que o par político e religião tem força para atrair várias oposições das
quais somos feitos: ciência e dogma; fé e razão; alma e corpo; o céu e a terra.
A
visita do papa Francisco ao Brasil, semanas depois da onde de mobilização que
tomou conta do país, parecia, até pelo perfil dos personagens, ato distinto da
afirmação de duas formas de ver o mundo. Os jovens que foram às ruas protestar
não se pareciam com os que se preparavam para as celebrações da fé católica. E
não se tratava apenas da forma e da linguagem, mas de uma distinção mais
profunda. Além disso, os temas eram outros e a forma de organização diferente.
Houve,
claro, momentos de intercessão, sobretudo na hora de programar a segurança: o
que parecia dar feição única aos movimentos era apenas o fato de se tratar, nos
dois casos, de multidões reunidas por objetivos comuns. No primeiro caso, a
massa conduziu o sentido; no segundo evento, deu-se o contrário. O movimento
das ruas tinha dimensão política, ainda quando negava esse fato; a reunião
religiosa, que sempre se apresentou com explicitamente ideológica (não existe
instituição mais política que a Igreja Católica), não se traduzia na prática
como tal.
A
movimentação religiosa foi antecedida de muitas análises sobre a crise da
religiosidade do brasileiro, sobre a perda da importância quantitativa do
catolicismo no país, pelos diagnósticos sobre a mudança do mapa da fé no país.
Além disso, ganharam destaque temas importantes ligados ao comportamento, à
liberdade e à tolerância, ao lado de certo esquentamento do debate teológico,
sempre tão rico no país, e que vinha sendo deixado de lado em nome de consensos
impostos autoritariamente.
Não
deixou de ser curiosa a forma como a jornada católica foi tratada no âmbito dos
negócios: um evento entre outros. Foram muitas as reportagens sobre mobilidade,
investimentos, negócios, hotelaria etc., tendo como elemento de comparação
grandes torneios esportivos e festejos laicos, da polêmica Copa das
Confederações ao réveillon de Copacabana. Em fé, esportes, festa e política,
parece que a quantidade vem dando as cartas.
Por
fim, a atenção aos temas religiosos traz ainda para o debate os recentes fatos
lamentáveis da onde conservadora evangélica neopentecostal, com episódios como
o projeto da “cura gay” e a diminuição da importância da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados, tornada moeda de troca entre partidos de menor
expressão. A moralização da questão política, além de retrocesso, é um perigo
ao qual a sociedade precisa estar alerta, sob o risco de viabilizar outros
projetos obscurantistas em moral e reacionários em termos sociais.
Se a
bancada ruralista, por exemplo, tem dificultado o encaminhamento de soluções
dos problemas fundiários e da política de produção de alimentos no Brasil com
sua atuação cerrada em comissões de seu interesse, a expressiva bancada
evangélica, ao partir da indistinção republicana entre interesses de fé e de
Estado, pode encaminhar propostas que atentem ainda mais gravemente contra a
sociedade. E fará isso a partir da anulação de preceitos ligados aos direitos
humanos e à dignidade da pessoa, sem falar nos entraves de ordem científica no
que tange às pesquisas no campo da saúde humana.
DEUS NÃO É CANDIDATO Religião é um
assunto importante. Há muitos equívocos em torno do tema, sobretudo no que diz
respeito a questões éticas. Durante muito tempo houve identificação entre
crença e moralidade, como se apenas quem tivesse fé na existência de Deus fosse
digno de consideração. Todos se lembram da pergunta feita em forma de pegadinha
aos candidatos de esquerda em várias campanhas eleitorais: “Você acredita em
Deus?”. Era uma forma de desqualificar o pretendente ao cargo público, como se
ateus e agnósticos fossem incapazes de habitar o terreno da moralidade.
No
entanto, quando se pensava que essa bobagem havia perdido sentido, a pergunta foi
sendo modificada para temas de ordem moral e familiar (esse bastião da
resistência conservadora), principalmente sobre o aborto. Trata-se de
experiência sutil para desqualificar o debate da ordem da política, dos
direitos da mulher e da saúde pública, desviando-o para o campo da religião.
Em
outras palavras, foi a forma de permitir que se continuasse perguntando aos
candidatos se acreditavam em Deus e de condená-los por meio de subterfúgios. A
questão do casamento gay e outras referentes ao comportamento são subsidiárias
da mesma estratégia desonesta.
O
crescimento do ateísmo e a defesa da racionalidade e da ciência em temas
públicos geraram outro cisma. Desta vez, em direção oposta. A religião passou a
ser vista apenas como ideologia preconceituosa e não como visão de mundo. O que
de melhor a teologia legou à humanidade, o senso de mistério e a busca da
transcendência, acabou jogado fora com o lado obscurantista de algumas
religiões em sua expressão fundamentalista. Para ser honesto, os riscos da incompreensão
e cerceamento do diálogo são ameaças que vêm dos dois lados. O ateísmo também
corre o risco do fundamentalismo no que ele tem de pior: a incapacidade em
ouvir o outro.
HABERMAS
É
possível conciliar fé e razão? O filósofo Jürgen Habermas acredita que sim. Em Fé e razão (Editora Edusp), que acaba de
ser lançado no Brasil, ele defende a relação dialógica da filosofia com as tradições religiosas e a
releitura sobre a posição do pensamento pós-metafísico entre ciências e
religião. Ou seja, ainda que a separação entre os dois universos seja radical,
sobretudo na inauguração da modernidade
e na construção do campo político, as doutrinas religiosas fazem parte da
genealogia da razão como a concebemos, que se nutre tanto do manancial grego
(filosofia) quanto das grandes crenças do que Jaspers chamou de era axial
(religiões monoteístas e espiritualidade oriental). Há tensão produtiva entre
fé religiosa e saber filosófico.
Bertrand
Russel discordaria. O filósofo inglês, no ensaio “O mal que os homens bons fazem”,
lembra que nossa moralidade é feita de superstição e racionalismo. Para ele, a
defesa da moral convencional é sempre restritiva, uma série de “não deverás”
que acaba por compor um código de conduta mesquinho e repressivo, onde deveria
comandar a liberdade. Os bonzinhos são, além de chatos, injustos quando se
trata de grandes questões. Pragmático, Russel defendia outra escala de valores,
que permitisse aos homens crescer e buscar a felicidade para todos, ainda que
em franco desrespeito às normas. Estas, como sabemos, muitas vezes dão forma a
interesses de quem tem mais poder e dinheiro.
A
bondade e a maldade, para o filósofo, precisam ser revistas. É fácil ser piedoso, ir à missa, não
cometer desvios morais, ainda que à custa de hipocrisia. O difícil não é
controlar os desejos, mas querer a felicidade para todos e combater as
injustiças. As palavras de Russel, escritas há mais de 70 anos, parecem
endereçadas aos nossos “bons” homens públicos, religiosos e empresários de
sucesso (às vezes as três encarnações na mesma pessoa): “Um homem deveria ser
considerado bom se fosse feliz, expansivo, generoso e alegre quando os outros
estivessem felizes; se fossem assim, uns poucos pecadilhos seriam considerados
de importância menor. No entanto, um homem que adquire fortuna por meio de
crueldade e exploração deveria ser visto como hoje vemos o chamado homem
imoral; e assim deveria ser julgado, mesmo que frequentasse igreja com
regularidade e desse uma parte de seus ganhos ilícitos com propósitos
públicos”.
Ser
ético é compromisso fundamental de quem não tem fé. Sem Deus, só assim é
possível pensar uma vida em comum e um projeto democrático de aprimoramento
social. Nessas horas, a política é sempre melhor do que a religião. Essa
poderia ser a lição que uniria as duas faixas de jovens que não se encontraram
nas ruas por umas poucas semanas de diferença. Uma teria muito o que aprender
com a outra.
Aliás,
achar que se pode aprender é também uma forma de diferenciar as boas das más
pessoas.”
(JOÃO PAULO, que
é editor de Cultura, em artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 27 de julho de 2013, caderno PENSAR, página 2).
Mais uma importante e oportuna contribuição para o
nosso trabalho de Mobilização para a
Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no mesmo veículo, edição de
26 de julho de 2013, caderno OPINIÃO, página
9, de autoria de DOM WALMOR OLIVEIRA DE
AZEVEDO, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, e que merece igualmente
integral transcrição:
“Novos
tempos e sentidos
A
temática “Novos tempos e novos sentidos” configurou o horizonte de análises,
partilhas e debates no Congresso Mundial de Universidades Católicas (CMUC),
realizado na PUC Minas, no contexto jovial da Semana Missionária na
Arquidiocese de Belo Horizonte. Nesse período preparatório que antecedeu a
Jornada Mundial da Juventude (JMJ), no Rio de Janeiro, os participantes do
congresso se debruçaram sobre discussões e reflexões, com a finalidade de
aperfeiçoar e proporcionar, especialmente aos jovens, ensino técnico e formação
humanística, numa sociedade em constante transformação.
A
Igreja sabe, assim como outras instituições devem saber, que os jovens são “a
janela para o futuro”, conforme disse o papa Francisco, ao chegar ao Brasil. E
a JMJ é demonstração clara desse entendimento. Por isso mesmo, o empenho da
Igreja em realizar um evento marcado pela universalidade e a riqueza de
oportunidades. Decisão que vai ao encontro do protagonismo jovem, mostrado nas
recentes manifestações populares. Iniciativas que, decisivamente, introduziram
a sociedade brasileira na exigência de uma nova etapa, marcada pelo modo de se
fazer a política. Indo além, pois influenciou funcionamentos de instâncias e
procedimentos configuradores dos rumos e cenários entre nós.
De
fato, são novos tempos e novos sentidos e o CMUC firma a educação católica em
posição de vanguarda e chama a atenção da sociedade, particularmente de
governos, para sua grave responsabilidade, na condição de promotores e
guardiões de uma educação de qualidade. Afinal, a educação qualificada é o
suporte para alavancar o imprescindível desenvolvimento na sociedade
brasileira, que não pode exilar-se na simples, embora insubstituível, formação
técnica. Há um sentido humanístico integral indispensável sem o qual se
compromete os recursos aplicados. Eles são transformados em desperdício quando
se opta por uma formação parcial. O mesmo ocorre quando se tem compreensão
estreita dos valores das instituições de ensino que não estejam estritamente
sob a batuta governamental.
Aliás,
o perfil isento de perspectivas ideológicas de caráter partidário das
instituições não governamentais mostra-se mais propício ao processo formativo.
Além do técnico e do formal, o conceitual assegura aos estudantes a observação
de valores que, de fato, formam lideranças lúcidas e profissionais cidadãos.
Esse diferencial que só vem do humanismo integral é próprio da educação
católica por sua tradição e, particularmente, por sua fonte referencial, o
evangelho de Jesus Cristo. Tal contribuição precisa ser mais reconhecida, respeitada
e destinatária de suporte, inclusive econômico, por aqueles que, oficialmente,
são responsáveis pela educação no país.
Ao
contrário de programas que exijam das instituições sérias que alavanquem
processos qualificados de formação na sociedade, os governos deveriam sim,
investir e dar suporte a esses centros acadêmicos, como ocorre em outras partes
do mundo. É preciso haver o reconhecimento de que, dessa forma, o país poderá
avançar mais rapidamente no ouro essencial para o desenvolvimento da sociedade,
que é o conhecimento integral, capaz de garantir-lhe competitividade no cenário
mundial. A educação não pode ser tratada, nos âmbitos federal, estadual e
municipal apenas pela satisfação de alguns índices. Talvez, sejam dados que
apenas apazigúem consciências e deveres executivos.
É
incontestável que a grave crise política na sociedade brasileira se deve também
à superficialidade da formação humanística integral. Outra não é a razão da
crise de lideranças em todos os campos. Política não se faz simplesmente com
artimanhas, jogos, articulações ou conchavos para se conseguir vitória. Essa é
a compreensão apreendida nas recentes manifestações populares. Como janela para
o futuro – e é peculiaridade do tempo da juventude – que não são boas as
perspectivas para seu presente e futuro sem mudanças mais profundas nos
processos educativos, no aperfeiçoamento de procedimentos e nos funcionamentos
participativos na sociedade.
A PUC
Minas hospedou durante o CMUC reitores, gestores, colaboradores, estudantes,
especialistas e conferencistas de mais de 30 países. Com organização e
funcionamento primoroso e preciso, projetou Minas Gerais com o qualificado da
educação, das preocupações em torno dela e das perspectivas abertas a serem
transformadas em compromissos. O que foi discutido e analisado nesse Congresso
impulsiona a educação católica para nova etapa. Por isso é preciso voltar a
esses conteúdos e debates. Esperamos que os setores responsáveis pela educação
se disponham à partilha dessas questões para melhorar o cenário educacional no
Brasil, como oportunidade de introduzi-lo em novos tempos e novos sentidos.”
Eis, portanto, mais páginas contendo importantes, adequadas
e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise de
liderança de nossa história – que é de ética,
de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas
educacionais, governamentais, jurídicas,
políticas, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de
modo a promovermos a inserção do País no concerto das potências mundiais
livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente
desenvolvidas...
Assim, urge ainda a efetiva problematização de
questões deveras cruciais como:
a) a
educação – universal e de qualidade, desde
a educação infantil (0 a 3 anos de
idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, na pré-escola) – e mais o imperativo da
modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira
série do ensino fundamental, independentemente
do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação
(especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade
absoluta de nossas políticas públicas;
b) o
combate, implacável e sem trégua,
aos três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir permanente,
competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares
civilizados, ou seja, próximos de zero; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da
vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de vária
ordem; III – o desperdício, em todas
as suas modalidades (por exemplo, “... Há um sentido humanístico integral
indispensável sem o qual se compromete os recursos aplicados. Eles são
transformados em desperdício quando se opta por uma formação parcial...”),
também a ocasionar inestimáveis perdas e danos;
c) a
dívida pública brasileira, com
projeção para 2013, segundo o Orçamento Geral da União, de exorbitante e
insuportável desembolso de cerca de R$ 1
trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos
(apenas com esta rubrica, previsão de R$ 610 bilhões), a exigir igualmente uma
imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...
Isto posto, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tão
descomunal sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a
nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais contundente ainda, afeta
a credibilidade de nossas instituições, negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à pátria, ao lado de abissais desigualdades sociais e
regionais e de extremas e sempre crescentes necessidades de ampliação e modernização de setores
como: a gestão pública; a infraestrutura (rodovias, ferrovias,
hidrovias, portos, aeroportos); a educação;
a saúde; saneamento ambiental (água
tratada, esgoto tratado, resíduos sólidos tratados, macrodrenagem urbana,
logística reversa); meio ambiente;
habitação; mobilidade urbana (trânsito, transporte e acessibilidade); emprego, trabalho e renda; agregação de
valor às commodities; assistência social; previdência social; segurança
alimentar e nutricional; segurança pública; forças armadas; polícia federal;
defesa civil; logística; pesquisa e desenvolvimento; ciência, tecnologia e
inovação; sistema financeiro nacional; turismo; comunicações; esporte, cultura
e lazer; qualidade (planejamento – estratégico, tático e operacional –,
eficiência, eficácia, efetividade, economicidade, criatividade, produtividade,
competitividade); entre outros...
São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que,
de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem
arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta
grande cruzada nacional pela cidadania e
qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente justa, ética, educada, civilizada,
qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que
possa partilhar suas extraordinárias e generosas riquezas, oportunidades e
potencialidades com todas as
brasileiras e com todos os brasileiros,
especialmente no horizonte de investimentos bilionários previstos e que
contemplam eventos como a Copa do Mundo de 2014; a Olimpíada de 2016; as obras
do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da era da
globalização, da internacionalização das organizações, da informação, do
conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um
possível e novo mundo da justiça, da
liberdade, da paz, da igualdade – e com
equidade –, e da fraternidade
universal...
Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a
nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...
O
BRASIL TEM JEITO!...