“Política
vivida em público
As recentes
manifestações que tomaram as ruas de diversos países ajudaram a enterrar a
velha hipótese de uma dissociação constitutiva entre “engajamento on-line” e “mobilização
efetiva”. Não é possível (como nunca foi) operar uma dicotomia entre um suposto
ativismo de sofá e a concreta manifestação de grupos de interesse em ações
tidas como reais. A internet, em sua diversidade de plataformas e modos de
interação, perpassa a vida pública contemporânea, configurando-se não como mero
instrumento de mobilização, mas como um dispositivo que atravessa a própria
construção dos sujeitos, de suas ações e da sociedade em que se inserem.
Não
há, pois, como distinguir claramente o que é específico da internet ou mesmo
linhas unidirecionais de difusão – como se os protestos “saíssem” da internet
para ganhar as ruas. Nem mesmo de uma circularidade entre rua e internet
poderíamos falar, já que tal ideia partiria da premissa de que há duas
entidades claramente distinguíveis: a rua e a internet. O que parece claro é
que não há como separar rua e internet, o que ajuda a contestar a ideia de que
o dito mundo on-line é palco de um ativismo cômodo, descompromissado e inócuo,
diferentemente da voz do povo nas ruas
Dito
isso, podemos dar mais um passo e pensar algumas consequências das recentes
manifestações brasileiras. Há quem defenda que elas acabaram por dissolver sem
deixar muitas consequências . Um olhar ao processo revela, todavia, que ele tem
sido bastante revelador e transformador. Não estamos, aqui, restringindo as
consequências das manifestações às conquistas no plano da política
institucional, embora algumas mudanças formais tenham, de fato, ocorrido. Essa
redução do sentido das manifestações a conquistas institucionais implicaria
desconhecer a própria natureza das manifestações. Mesmo porque seria
extremamente difícil avaliar as conquistas em comparação com as demandas, tendo
em vista a frequente manifestação pública de reivindicações contraditórias.
Assim,
gostaríamos de chamar a atenção para três transformações que emergem no bojo
das manifestações e que dizem: (1) das formas de algumas lutas contemporâneas;
(2) dos conflitos e dilemas experimentados no Brasil atual; (3) do tipo de
participação almejada.
(1)As manifestações
contemporâneas chamam a atenção por suas características organizacionais, que
abrem novas possibilidades para as lutas sociais. Não defendemos, com isso, que
elas sejam inteiramente inovadoras em suas estruturas e formas. Mas há de se
reconhecer que o conjunto da obra tem certas especificidades. Um ponto que
chama a atenção na organização destes protestos é a existência de diferentes
níveis organizacionais no interior de uma manifestação. Se há pessoas mobilizadas
efemeramente por meio de redes sociais e encontros casuais, existem conjuntos
mais organizados de ativistas em torno de grupos, coletivos, movimentos ou
associações. Se isso pode parecer óbvio, a compreensão das relações dinâmicas
entre esses dois níveis organizacionais não é nada banal. Há pontos de
convergência e de tensão entre esses níveis, sendo que os desdobramentos das
lutas dependem dessas relações. Por um lado, é interessante observar, por
exemplo, como a presença pública de um grande volume de pessoas permite ações
que não seriam possíveis de outra forma. Afinal, os ditos “coxinhas” podem
prestar um serviço aos ativistas de longa data. Por outro lado, é este mesmo
volume que pode levar a uma dispersão das reivindicações. Um segundo ponto sobre
a natureza organizacional das manifestações está relacionado a um processo de
personalização da participação, que foi bem analisado por Lance Benett e
Alexandra Segerberg.
(2)Para além da
dinâmica organizacional de alguns conflitos contemporâneos, as manifestações
são reveladoras de conflitos e dilemas experimentados pelo Brasil. Em primeiro
lugar, a pulverização das demandas gera uma competição simbólica sobre a
efetiva natureza dos protestos. Nessa competição, vieram à tona discursos
tradicionalmente invisíveis, que demonstraram sua força e capilaridade. É o que
se nota, por exemplo, nos cartazes que propõem o retorno dos militares ao
poder. Em segundo lugar, e no sentido de tornar discursos existentes visíveis,
observa-se que as manifestações fizeram aflorar as tensões existentes em um
país que se diz consensual. No Brasil para inglês ver, não havia conflitos
religiosos, nem entre direita e esquerda, assim como o Brasil de outrora já foi
visto como uma democracia racial. Ao questionar o mito de um país consensual e
capaz de acomodar diferenças, as manifestações contribuíram para a exposição de
dilemas muito significativos com os quais se faz necessário lidar.
(3)Uma terceira mudança
apreensível a partir das manifestações diz respeito ao tipo de democracia
almejada por parcelas significativas da população. Pode-se, facilmente,
argumentar os perigos de um sistema político sem partidos para afirmar que os
protestos contemporâneos não apresentam uma alternativa concreta à forma como
as democracias liberais estão institucionalizadas. No entanto, é possível ler a
crítica aos partidos como uma defesa por formas de organização política que
aproximem os eleitores e representantes e que gerem novas formas de expressão e
consideração das opiniões dos cidadãos. Essa defesa implica transformações nas
organizações partidárias, nos processos eleitorais e, também, nas próprias
instituições participativas existentes. Os protestos parecem apontar para a
insuficiência de certas instituições participativas existentes, demandando
formas de debate mais inclusivas, abertas, articuladas e empoderadas. A
institucionalização informal desse anseio nas assembleias populares é forte
indício desse desejo. A geração de diversos debates públicos historicamente
silenciados (que vão do acesso à cidade até a reforma política, passando por
questões de direitos humanos) também acena para o desejo de uma política
construída e vivida em público.”
(RICARDO
FABRINO MENDONÇA, que é professor adjunto do Departamento de Ciência
Política da UFMG, e MÁRCIA MARIA CRUZ, jornalista, em artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 16 de
novembro de 2013, caderno PENSAR, página
2)
Mais uma importante e oportuna contribuição para o
nosso trabalho de Mobilização para a
Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no mesmo veículo, edição de
20 de novembro de 2013, caderno OPINIÃO,
página 7, de autoria de FREI BETTO, que
é escritor, autor de Aquário negro (Agir),
entre outros livros, e que merece igualmente integral transcrição:
“Inconsciência
branca
Por ser data de
comemoração de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695), último líder heroico do mais
importante brasileiro, 20 de novembro é dedicada à consciência negra. É também
“Dia da Inconsciência Branca”. Foram as armas que deram aos colonizadores europeus
o poder opressor sobre as nações da África negra. Em nome de Deus e de um
projeto civilizatório, invadiram o continente africano e submeteram o seu povo
ao jugo da escravidão.
Obrigado a aceitar o batismo cristão, a marca
do sacramento era gravada nas peles negras a ferro e fogo. O propósito:
livrá-los, após esta vida, das chamas eternas do inferno, por culpa de suas
crenças animistas e rituais eróticos. Destinava-os, porém, nesta terra, ao
suplício do trabalho árduo, das sevícias, das chibatas, das torturas e da morte
atroz. De tal arrogância se nutria a inconsciência branca que, ao qualificar de
raça e mera diferença de coloração epidérmica, elevou-a à categoria de pretensa
ciência. Buscou-se na Bíblia a
caricatura de um deus maldito que, após o dilúvio universal, teria criado a
descendência negra da Cam (Cão), um dos filhos de Noé.
No
Brasil, o preconceito à negritude deita raízes na mais longa história de
escravidão das três Américas: 350 anos! Ainda que, hoje, nossas leis condenem a
discriminação, sabem os negros que, aqui, eles são duplamente discriminados:
por serem negros e pobres. Ao escravo liberto se negou o acesso à terra, que
ele tão bem sabia cultivar. Impediu-se ainda o acesso à carreira eclesiástica,
aos quartéis (exceto como soldado e bucha de canhão na guerra do Brasil contra
o Paraguai), às escolas particulares.
Na
década de 1950, no Colégio Dom Silvério, em Belo Horizonte, ouvi irmão Caetano
Maria, procedente de Angola, apregoar na sala de aula que negros eram inaptos à
matemática e às ciências abstratas, vocacionados à música e aos trabalhos
manuais. A inconsciência branca viceja, ainda hoje, na promoção turística da
mulata carnavalesca, ela sim liberada, por leis e censores, a exibir em público
seu corpo nu. É a inconsciência branca que protesta contra o direito de cotas
para negros nas universidades; encara como suspeita o negro encontrado em
espaços predominantemente ocupados por brancos; induz a polícia a expor garras
ferozes ao revistar jovens negros.
O
profetismo heroico de Zumbi, Mandela, Luther King e tantos outros ainda não
logrou descontaminar nossa cultura do ranço do preconceito e da discriminação.
Quantos executivos negros ocupam cargos de direção em nossas empresas? Apenas
5,3%. Quantos garçons e chefs de cozinha? Quantos apresentadores de televisão e
animadores de auditório?
A
violência com que médicos brasileiros, todos brancos, submeteram, em Fortaleza
“ao corredor polonês da xenofobia” – o médico cubano Juan Delgado, um negro, a
quem a presidente Dilma pediu desculpas em nome do povo brasileiro, bem
comprova a inconsciência branca. Essa inconsciência também adota o preconceito
às avessas. Festejou-se a eleição de Obama, o primeiro negro na Casa Branca,
como uma pá de piche (cal é branca) na política terrorista do presidente Bush.
Esqueceu-se que Obama, antes de ser negro, é estadunidense, convencido do
direito (divino?) de supremacia dos EUA sobre as demais nações do mundo. Por
que haveria ele de pedir desculpas por espionar a presidente Dilma se não está
disposto a abdicar dessa violação? Obama é tão guerreiro e cínico quanto Bush.
Com
frequência vemos o preconceito às avessas expressar-se na negação da negritude,
como se ela fosse um estigma, por meio de eufemismos como afrodescendente. Sou
branco, embora traga nas veias sangue indígena e negro, e nunca me chamaram de
iberodescendente ou eurodescendente.
A data
de 20 de novembro deveria ser comemorada nas escolas com lições históricas
sobre o preconceito e discriminação, e depoimentos de negros. De nossa
população carcerária, hoje beirando 500 mil detentos, 74% são negros. Nos EUA,
de cada 11 presos, apenas 1 e branco. Só a consciência negra é capaz de
combater a inconsciência branca e despertá-la, tornando hediondos todos os
crimes de preconceito e discriminação.”
Eis, portanto, mais páginas contendo importantes,
adequadas e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise
de liderança de nossa história – que é de ética,
de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas
educacionais, governamentais, jurídicas,
política, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de modo
a promovermos a inserção de nosso País no concerto das potências mundiais
livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente
desenvolvidas...
Assim, urge ainda a efetiva problematização de
questões deveras cruciais como:
a) a
educação – universal e de qualidade, desde
a educação infantil (0 a 3 anos de
idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo
da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira
série do ensino fundamental, independentemente
do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação
(especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade
absoluta de nossas políticas públicas;
b) o
combate, implacável e sem trégua,
aos três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir permanente,
competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares
civilizados, ou seja, próximos de zero; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da
vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de vária
ordem; III – o desperdício, em todas
as suas modalidades, também a ocasionar inestimáveis perdas e danos,
inexoravelmente irreparáveis;
c) a
dívida pública brasileira, com
projeção para 2013, segundo o Orçamento Geral da União, de exorbitante e
insuportável desembolso de cerca de R$ 1
trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos
(apenas com esta rubrica, previsão de R$ 610 bilhões), a exigir igualmente uma
imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...
Isto posto, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tão
descomunal sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a
nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais contundente ainda, afeta
a credibilidade de nossas instituições, negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à pátria, ao lado de abissais desigualdades sociais e
regionais e de extremas e sempre crescentes necessidades de ampliação e modernização de setores
como: a gestão pública; a infraestrutura (rodovias, ferrovias,
hidrovias, portos, aeroportos); a educação;
a saúde; o saneamento ambiental (água tratada, esgoto tratado, resíduos
sólidos tratados, macrodrenagem urbana, logística reversa); meio ambiente; habitação; mobilidade urbana
(trânsito, transporte, acessibilidade); minas e energia; emprego, trabalho e renda; agregação de valor às
commodities; sistema financeiro nacional; assistência social; previdência
social; segurança alimentar e
nutricional; segurança pública; forças armadas; polícia federal; defesa civil;
logística; pesquisa e desenvolvimento; ciência, tecnologia e inovação;cultura,
esporte e lazer; turismo; comunicações; qualidade (planejamento –
estratégico, tático e operacional –, transparência, eficiência, eficácia,
efetividade, economicidade, criatividade, produtividade, competitividade);
entre outros...
São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que,
de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem
arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta
grande cruzada nacional pela cidadania e
qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente justa, ética, educada, civilizada,
qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que
possa partilhar suas extraordinárias e abundantes riquezas, oportunidades e
potencialidades com todas as
brasileiras e com todos os
brasileiros, especialmente no horizonte de investimentos bilionários previstos
se que contemplam eventos como a Copa do Mundo de 2014; a Olimpíada de 2016; as
obras do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da
era da globalização, da internacionalização das organizações, da informação, do
conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um
possível e novo mundo da justiça, da
liberdade, da paz, da igualdade – e com
equidade –, e da fraternidade
universal...
Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a
nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...
O
BRASIL TEM JEITO!...