sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A CIDADANIA, A POLÍTICA EM PÚBLICO E A CONSCIÊNCIA NEGRA

“Política vivida em público
        
         As recentes manifestações que tomaram as ruas de diversos países ajudaram a enterrar a velha hipótese de uma dissociação constitutiva entre “engajamento on-line” e “mobilização efetiva”. Não é possível (como nunca foi) operar uma dicotomia entre um suposto ativismo de sofá e a concreta manifestação de grupos de interesse em ações tidas como reais. A internet, em sua diversidade de plataformas e modos de interação, perpassa a vida pública contemporânea, configurando-se não como mero instrumento de mobilização, mas como um dispositivo que atravessa a própria construção dos sujeitos, de suas ações e da sociedade em que se inserem.
         Não há, pois, como distinguir claramente o que é específico da internet ou mesmo linhas unidirecionais de difusão – como se os protestos “saíssem” da internet para ganhar as ruas. Nem mesmo de uma circularidade entre rua e internet poderíamos falar, já que tal ideia partiria da premissa de que há duas entidades claramente distinguíveis: a rua e a internet. O que parece claro é que não há como separar rua e internet, o que ajuda a contestar a ideia de que o dito mundo on-line é palco de um ativismo cômodo, descompromissado e inócuo, diferentemente da voz do povo nas ruas
         Dito isso, podemos dar mais um passo e pensar algumas consequências das recentes manifestações brasileiras. Há quem defenda que elas acabaram por dissolver sem deixar muitas consequências . Um olhar ao processo revela, todavia, que ele tem sido bastante revelador e transformador. Não estamos, aqui, restringindo as consequências das manifestações às conquistas no plano da política institucional, embora algumas mudanças formais tenham, de fato, ocorrido. Essa redução do sentido das manifestações a conquistas institucionais implicaria desconhecer a própria natureza das manifestações. Mesmo porque seria extremamente difícil avaliar as conquistas em comparação com as demandas, tendo em vista a frequente manifestação pública de reivindicações contraditórias.
         Assim, gostaríamos de chamar a atenção para três transformações que emergem no bojo das manifestações e que dizem: (1) das formas de algumas lutas contemporâneas; (2) dos conflitos e dilemas experimentados no Brasil atual; (3) do tipo de participação almejada.
(1)As manifestações contemporâneas chamam a atenção por suas características organizacionais, que abrem novas possibilidades para as lutas sociais. Não defendemos, com isso, que elas sejam inteiramente inovadoras em suas estruturas e formas. Mas há de se reconhecer que o conjunto da obra tem certas especificidades. Um ponto que chama a atenção na organização destes protestos é a existência de diferentes níveis organizacionais no interior de uma manifestação. Se há pessoas mobilizadas efemeramente por meio de redes sociais e encontros casuais, existem conjuntos mais organizados de ativistas em torno de grupos, coletivos, movimentos ou associações. Se isso pode parecer óbvio, a compreensão das relações dinâmicas entre esses dois níveis organizacionais não é nada banal. Há pontos de convergência e de tensão entre esses níveis, sendo que os desdobramentos das lutas dependem dessas relações. Por um lado, é interessante observar, por exemplo, como a presença pública de um grande volume de pessoas permite ações que não seriam possíveis de outra forma. Afinal, os ditos “coxinhas” podem prestar um serviço aos ativistas de longa data. Por outro lado, é este mesmo volume que pode levar a uma dispersão das reivindicações. Um segundo ponto sobre a natureza organizacional das manifestações está relacionado a um processo de personalização da participação, que foi bem analisado por Lance Benett e Alexandra Segerberg.
(2)Para além da dinâmica organizacional de alguns conflitos contemporâneos, as manifestações são reveladoras de conflitos e dilemas experimentados pelo Brasil. Em primeiro lugar, a pulverização das demandas gera uma competição simbólica sobre a efetiva natureza dos protestos. Nessa competição, vieram à tona discursos tradicionalmente invisíveis, que demonstraram sua força e capilaridade. É o que se nota, por exemplo, nos cartazes que propõem o retorno dos militares ao poder. Em segundo lugar, e no sentido de tornar discursos existentes visíveis, observa-se que as manifestações fizeram aflorar as tensões existentes em um país que se diz consensual. No Brasil para inglês ver, não havia conflitos religiosos, nem entre direita e esquerda, assim como o Brasil de outrora já foi visto como uma democracia racial. Ao questionar o mito de um país consensual e capaz de acomodar diferenças, as manifestações contribuíram para a exposição de dilemas muito significativos com os quais se faz necessário lidar.
(3)Uma terceira mudança apreensível a partir das manifestações diz respeito ao tipo de democracia almejada por parcelas significativas da população. Pode-se, facilmente, argumentar os perigos de um sistema político sem partidos para afirmar que os protestos contemporâneos não apresentam uma alternativa concreta à forma como as democracias liberais estão institucionalizadas. No entanto, é possível ler a crítica aos partidos como uma defesa por formas de organização política que aproximem os eleitores e representantes e que gerem novas formas de expressão e consideração das opiniões dos cidadãos. Essa defesa implica transformações nas organizações partidárias, nos processos eleitorais e, também, nas próprias instituições participativas existentes. Os protestos parecem apontar para a insuficiência de certas instituições participativas existentes, demandando formas de debate mais inclusivas, abertas, articuladas e empoderadas. A institucionalização informal desse anseio nas assembleias populares é forte indício desse desejo. A geração de diversos debates públicos historicamente silenciados (que vão do acesso à cidade até a reforma política, passando por questões de direitos humanos) também acena para o desejo de uma política construída e vivida em público.”

(RICARDO FABRINO MENDONÇA, que é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG, e MÁRCIA MARIA CRUZ,  jornalista, em artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 16 de novembro de 2013, caderno PENSAR, página 2)

Mais uma importante e oportuna contribuição para o nosso trabalho de Mobilização para a Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no mesmo veículo, edição de 20 de novembro de 2013, caderno OPINIÃO, página 7, de autoria de FREI BETTO, que é escritor, autor de Aquário negro (Agir), entre outros livros, e que merece igualmente integral transcrição:

“Inconsciência branca
        
         Por ser data de comemoração de Zumbi dos Palmares (1655 – 1695), último líder heroico do mais importante brasileiro, 20 de novembro é dedicada à consciência negra. É também “Dia da Inconsciência Branca”. Foram as armas que deram aos colonizadores europeus o poder opressor sobre as nações da África negra. Em nome de Deus e de um projeto civilizatório, invadiram o continente africano e submeteram o seu povo ao jugo da escravidão.
         Obrigado a aceitar o batismo cristão, a marca do sacramento era gravada nas peles negras a ferro e fogo. O propósito: livrá-los, após esta vida, das chamas eternas do inferno, por culpa de suas crenças animistas e rituais eróticos. Destinava-os, porém, nesta terra, ao suplício do trabalho árduo, das sevícias, das chibatas, das torturas e da morte atroz. De tal arrogância se nutria a inconsciência branca que, ao qualificar de raça e mera diferença de coloração epidérmica, elevou-a à categoria de pretensa ciência. Buscou-se na Bíblia a caricatura de um deus maldito que, após o dilúvio universal, teria criado a descendência negra da Cam (Cão), um dos filhos de Noé.
         No Brasil, o preconceito à negritude deita raízes na mais longa história de escravidão das três Américas: 350 anos! Ainda que, hoje, nossas leis condenem a discriminação, sabem os negros que, aqui, eles são duplamente discriminados: por serem negros e pobres. Ao escravo liberto se negou o acesso à terra, que ele tão bem sabia cultivar. Impediu-se ainda o acesso à carreira eclesiástica, aos quartéis (exceto como soldado e bucha de canhão na guerra do Brasil contra o Paraguai), às escolas particulares.
         Na década de 1950, no Colégio Dom Silvério, em Belo Horizonte, ouvi irmão Caetano Maria, procedente de Angola, apregoar na sala de aula que negros eram inaptos à matemática e às ciências abstratas, vocacionados à música e aos trabalhos manuais. A inconsciência branca viceja, ainda hoje, na promoção turística da mulata carnavalesca, ela sim liberada, por leis e censores, a exibir em público seu corpo nu. É a inconsciência branca que protesta contra o direito de cotas para negros nas universidades; encara como suspeita o negro encontrado em espaços predominantemente ocupados por brancos; induz a polícia a expor garras ferozes ao revistar jovens negros.
         O profetismo heroico de Zumbi, Mandela, Luther King e tantos outros ainda não logrou descontaminar nossa cultura do ranço do preconceito e da discriminação. Quantos executivos negros ocupam cargos de direção em nossas empresas? Apenas 5,3%. Quantos garçons e chefs de cozinha? Quantos apresentadores de televisão e animadores de auditório?
         A violência com que médicos brasileiros, todos brancos, submeteram, em Fortaleza “ao corredor polonês da xenofobia” – o médico cubano Juan Delgado, um negro, a quem a presidente Dilma pediu desculpas em nome do povo brasileiro, bem comprova a inconsciência branca. Essa inconsciência também adota o preconceito às avessas. Festejou-se a eleição de Obama, o primeiro negro na Casa Branca, como uma pá de piche (cal é branca) na política terrorista do presidente Bush. Esqueceu-se que Obama, antes de ser negro, é estadunidense, convencido do direito (divino?) de supremacia dos EUA sobre as demais nações do mundo. Por que haveria ele de pedir desculpas por espionar a presidente Dilma se não está disposto a abdicar dessa violação? Obama é tão guerreiro e cínico quanto Bush.
         Com frequência vemos o preconceito às avessas expressar-se na negação da negritude, como se ela fosse um estigma, por meio de eufemismos como afrodescendente. Sou branco, embora traga nas veias sangue indígena e negro, e nunca me chamaram de iberodescendente ou eurodescendente.
         A data de 20 de novembro deveria ser comemorada nas escolas com lições históricas sobre o preconceito e discriminação, e depoimentos de negros. De nossa população carcerária, hoje beirando 500 mil detentos, 74% são negros. Nos EUA, de cada 11 presos, apenas 1 e branco. Só a consciência negra é capaz de combater a inconsciência branca e despertá-la, tornando hediondos todos os crimes de preconceito e discriminação.”

Eis, portanto, mais páginas contendo importantes, adequadas e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise de liderança de nossa história – que é de ética, de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas educacionais, governamentais, jurídicas, política, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de modo a promovermos a inserção de nosso País no concerto das potências mundiais livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente desenvolvidas...

Assim, urge ainda a efetiva problematização de questões deveras cruciais como:

     a)     a educação – universal e de qualidade, desde a educação infantil (0 a 3 anos de idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira série do ensino fundamental, independentemente do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação (especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade absoluta de nossas políticas públicas;

     b)    o combate, implacável e sem trégua, aos três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir permanente, competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares civilizados, ou seja, próximos de zero; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de vária ordem; III – o desperdício, em todas as suas modalidades, também a ocasionar inestimáveis perdas e danos, inexoravelmente irreparáveis;

     c)     a dívida pública brasileira, com projeção para 2013, segundo o Orçamento Geral da União, de exorbitante e insuportável desembolso de cerca de R$ 1 trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos (apenas com esta rubrica, previsão de R$ 610 bilhões), a exigir igualmente uma imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...

Isto posto, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tão descomunal sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais contundente ainda, afeta a credibilidade de nossas instituições, negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à pátria, ao lado de abissais desigualdades sociais e regionais e de extremas e sempre crescentes necessidades de ampliação e modernização de setores como: a gestão pública; a infraestrutura (rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos); a educação; a saúde; o saneamento ambiental (água tratada, esgoto tratado, resíduos sólidos tratados, macrodrenagem urbana, logística reversa); meio ambiente; habitação; mobilidade urbana (trânsito, transporte, acessibilidade); minas e energia; emprego, trabalho e renda; agregação de valor às commodities; sistema financeiro nacional; assistência social; previdência social; segurança alimentar e nutricional; segurança pública; forças armadas; polícia federal; defesa civil; logística; pesquisa e desenvolvimento; ciência, tecnologia e inovação;cultura, esporte e lazer; turismo; comunicações; qualidade (planejamento – estratégico, tático e operacional –, transparência, eficiência, eficácia, efetividade, economicidade, criatividade, produtividade, competitividade); entre outros...

São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que, de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta grande cruzada nacional pela cidadania e qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente justa, ética, educada, civilizada, qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que possa partilhar suas extraordinárias e abundantes riquezas, oportunidades e potencialidades com todas as brasileiras e com todos os brasileiros, especialmente no horizonte de investimentos bilionários previstos se que contemplam eventos como a Copa do Mundo de 2014; a Olimpíada de 2016; as obras do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da era da globalização, da internacionalização das organizações, da informação, do conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um possível e novo mundo da justiça, da liberdade, da paz, da igualdade – e com equidade –, e da fraternidade universal...

Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...

O BRASIL TEM JEITO!...

         

Nenhum comentário: