quarta-feira, 14 de maio de 2014

A CIDADANIA, A INTELIGÊNCIA NAS RELAÇÕES HUMANAS E A COPA DAS CIVILIDADES

“Inteligência relacional

       No início da história da humanidade, a ideia de valor esteve ligada a algo, objeto de escolha ou de preferência, sem que houvesse nenhuma discussão mais detalhada sobre o que era isso. Estava vinculada a quando algo era desejado. Depois disso, a palavra foi usada na Antiguidade para indicar a utilidade e o preço dos bens materiais e a dignidade e o mérito das pessoas. Por não suscitar muitos problemas de natureza filosófica, a palavra foi aceita dessa forma em todas as culturas, com uma ou outra observação feita pelas escolas filosóficas. Tais observações foram desde aqueles que a queriam vincular exclusivamente às transações comerciais, até os que a viam com total subjetividade, estabelecendo-a como sinônimo de virtude.

          De forma geral acabou-se por entendê-la como os conteúdos significativos das coisas em suas características objetivas, por exemplo, raridade, escassez, o verdadeiro, o honesto, o heroico e o prazeroso. Nessa discussão, os psicólogos e sociólogos do fim do século 19, embora afirmassem que não se poderia ter uma lei universal de conduta, julgavam que era possível determinar a ordem dos valores que devem ser preferidos nas escolhas individuais. Nessas escolhas estão, por exemplo, coisas de caráter afetivo e sentimental, o que fez com que os teóricos do assunto postulassem a necessidade de classificar os valores em termos de internos e externos. Internos aqueles que se referem ao que é significativo para a pessoa em decorrência de suas experiências, afetos e vínculos. Externos aqueles que a sociedade legitima e declara, nem sempre sendo capaz de realizá-lo. Por isso, muito do que se tem como valor externo fica no domínio da utopia.

          No entanto, aquilo que é digno de escolha deve ser preferido em termos coletivos, antes que em termos individuais. Tal postulado levou à construção do entendimento de que os valores têm naturezas obrigatórias e preferenciais. As obrigatórias estão associadas às virtudes defendidas a partir da lei da moral universal – verdade, honestidade, vida, coragem, integridade, dignidade – e são determinantes da relação dos indivíduos consigo mesmos e com a sociedade e que servem de forma objetiva, às avaliações que se fazem deles. As preferenciais, associadas à identidade da pessoa, dizem respeito a saúde, beleza, força, riqueza, fama, nobreza. Essas, de caráter pessoal, podem ser diferentes de pessoa para pessoa, mas não devem intervir na “virtude” dos relacionamentos. Dessa forma, a ideia de valor, do ponto de vista objetivo, manteve-se vinculada a uma visão econômica e sobre tal não há muito a ser dito, porque o senso comum é suficiente. No entanto, na perspectiva da subjetividade, valor está ligado à quantidade de significado que atribuo às coisas da minha vida em particular: o relógio do vovô, o sapatinho da primeira filha, a foto do batizado, aquela concha colhida na primeira viagem com a namorada etc.

          No filme Riquinho (Rich Rich, Warner Bros, 1994, dirigido por Donald Petrie), uma ficção infantil que conta a história do menino mais rico do mundo, há um caso bem ilustrativo da ideia de valor. O vilão da história tenta roubar o cofre da família Rico. Ao abri-lo, descobre que dentro só tem quinquilharias do tipo carrinho de bebê, a primeira chupeta, o dentinho de leite etc. Ao confrontar o Sr. Rico, pai do Riquinho, o vilão pergunta onde estão os dólares, as cartas de crédito, as ações, as jóias etc. O Sr. Rico responde: “Nos bancos. Aqui no caixa-forte doméstico só guardamos o que tem valor para nós”.

          Valor é o reconhecimento do que é significativo. Em muitos anos de atendimento às pessoas, como coaching, escuto histórias de quem que se queixa da ausência dos pais, do cônjuge etc. Trabalhamos tanto para dar “coisas” aos nossos filhos e aos demais que nos cercam, mas no esquecemos de doar-nos a nós mesmos. Assim é que não me lembro de escutar histórias em que as pessoas lembrem-se da roupa de grife, das viagens ao exterior, etc. Aí me pergunto: quanto trabalho excessivamente, onde está meu senso de valor? Quando não tenho tempo, nem para mim mesmo, onde está meu senso de valor? É preciso lembrar que revelo meus valores nas escolhas que faço.

          Muitas pessoas anseiam por altos salários, posições sociais expressivas, frequentar lugares importantes, serem reconhecidas etc. Diante disso, há que se perguntar a que propósito tais anseios atendem. Estar disposto a lutar por “um lugar ao sol” é uma premissa válida, mas fazer qualquer coisa para isso é não ter valor.

          O que se espera de cada um e de todos nós é que sejamos capazes de construir uma vida com integridade e dignidade que se reconheçam nas práticas da vida e nos relacionamentos que a sustentam. Espera-se que busquemos uma justiça para todos e não apenas para nós; que busquemos qualidade de vida para todos, e não apenas para nós; que lutemos por melhores condições de trabalho para todos, e não apenas para nós. Espera-se honestidade na sociedade, mas que também atuemos com honestidade; que sejamos alvos das benfeitorias sociais, mas que as façamos também; que todos reconheçam seus valores e que também reconheçam os valores dos outros. Que as atitudes mais simples estejam cheias de significado, e não apenas os grandes atos. Que a microvida seja a sustentação das grandes políticas públicas, de modo tal, que nos orgulhemos daquilo que somos e do que fazemos, a ponto de desejar que seja público e que reverta para nós mesmos.”

(HOMERO REIS. Coach, em artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 11 de maio de 2014, caderno MEGACLASSIFICADOSADMITE-SE, coluna MERCADO DE TRABALHO, página 12).

Mais uma importante e oportuna contribuição para o nosso trabalho de Mobilização para a Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no mesmo veículo, edição de 9 de maio de 2014, caderno OPINIÃO, página 7, de autoria de DOM WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, e que merece igualmente integral transcrição:

“Copa das civilidades

       Estamos vivendo a catástrofe do surto de incivilidades, avalanche de barbáries que está assolando nossa sociedade. Constata-se a perda irracional dos limites e, sobretudo, de referências, sem as quais tudo é possível, inclusive escolhas que estão na contramão da cidadania. Aos rosários de lamentações inevitáveis diante dessa cenário desolador, é preciso acrescentar uma efetiva atitude reativa. Somente assim não se permitirá que esse tempo de conquistas admiráveis da inteligência humana se sucumba diante das irracionalidades que geram violências, corrupção, eleições “sujas”, insanidade nas relações interpessoais e uma série de outros desafios que expõem o avanço da desumanização.

          Os números e estatísticas são indispensáveis como instrumento de conscientização e sensibilização. Mas o determinante nessa necessária postura reativa é a identificação das raízes e causas produtoras desses preocupantes cenários. O que se está vivendo é um grande drama social, com perdas de rumo na busca da verdade, no gosto pelo bem e pela justiça. Certamente, aí está um gargalo produtor de situações caóticas. Cada um estabelece e busca impor o seu próprio critério. Os resultados têm sido terríveis, como mostram os episódios em que se busca fazer “justiça com as próprias mãos”. Infelizmente, vivemos um tempo de linchamentos, desentendimentos com desfechos violentos, que muitas vezes resultam em perdas irreversíveis.

          A ordem, enquanto justiça e garantia de respeito irrestrito à dignidade humana, tem um percurso e balizamentos éticos próprios. A perda dessa referência é grave e torna-se um grande desafio chegar às raízes dos males contemporâneos. Fixar o olhar nas bases que instauram a desordem é o passo determinante para promover grandes mudanças. E alcançá-las não se faz sem o que é próprio da fé, como experiência e como caminho para a fonte perene dos valores essenciais. Ela é um patrimônio insubstituível da pessoa, da família e da sociedade, capaz de corrigir rumos e recompor o tecido da cultura.

          É hora de percorrer o caminho da fé. O colapso que se abate sobre nós é uma séria crise de valores em razão da superficialidade que emoldura o viver humano contemporâneo. Só dá conta de alcançar o equilíbrio e a seriedade quem se alimenta diariamente de sólidas referências. A dinâmica da cultura contemporânea tem empurrado a sociedade para o esquecimento de um princípio básico inegociável. Trata-se da justa compreensão de que o essencial está na interioridade, vem das raízes, e não se resume nas coisas colocadas ao nosso redor. Ao ignorar esse princípio, a humanidade alimenta a tempestade que tem gerado naufrágios no percurso da vida. Todos precisam compreender que o essencial está na interioridade. Caso contrário, perde-se o rumo, não se consegue a força necessária para superar adversidades, perde-se o balizamento da ética, escorregando-se na direção de todo tipo de imoralidades. A cultura contemporânea está ficando cega para esse princípio, que se cultiva com a fé.

          Compartilho a experiência vivida por nós, bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reunidos na Assembleia Geral que será concluída hoje. Neste último dia, viveremos um tempo dedicado ao investimento na fundamental experiência da fé. A conclusão da Assembleia será com um retiro, marcado pelas orações, balizando uma carregada pauta de trabalhos, debates, reflexões sobre temas relacionados à evangelização e à construção da sociedade justa e fraterna. Meditaremos à luz de grandes personagens bíblicos, como Abraão, Maria – Mãe de Jesus, Pedro e Paulo. Desse modo, amadureceremos a compreensão  de que é peregrinando na fé que se consegue manter a vida no rumo certo.

          A partir dessa peregrinação, nós, bispos do Brasil, encontramos força e fôlego para produzir, nesses dias de Assembleia, um importante documento que indica o caminho para fortalecer as paróquias e comunidades de fé, presença solidária e comprometida na vida do povo em diferentes realidades, grande capilaridade da Igreja Católica. Também aprovamos rico e corajoso documento sobre a Igreja e a questão agrária brasileira. Não menos importante foi a abertura da reflexão sobre a cidadania de cada cristão na Igreja e sua atuação testemunhal na construção da sociedade. Nessa direção, desenvolvemos nosso Projeto Brasil, cujo coração é a continuação da luta pela reforma política. Em resposta à crescente violência, foi aprovada, por unanimidade, a vivência do Ano da Paz, do dia 30 de novembro de 2014 até o Natal de 2015, quando serão promovidas ações para mudar esse triste cenário de desumanidades.

          O grande volume de assuntos tratados, encaminhamentos e compromissos assumidos nos confirmam, às vésperas da Copa do Mundo, que é hora de avaliações e escolhas de rumos novos, uma prolongada copa de civilidades. Se não jogarmos essa copa, não venceremos. É hora de chutar a bola que desfigura a civilidade. Caso contrário, perderemos o jogo pela vida. Os cenários que horrorizam nossa sociedade só serão vencidos se conseguirmos, com a graça da fé alimentando nossa cidadania e o respeito à dignidade humana, jogar uma copa de civilidades.”

Eis, portanto, mais páginas contendo importantes, incisivas e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise de liderança de nossa história – que é de ética, de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas educacionais, governamentais, jurídicas, políticas, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de modo a promovermos a inserção do País no concerto das potências mundiais livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente desenvolvidas...

Assim, urge ainda a efetiva problematização de questões deveras cruciais como:

a)    a educação – universal e de qualidade –, desde a educação infantil (0 a 3 anos de idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira série do ensino fundamental, independentemente do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação (especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade absoluta de nossas políticas públicas;

b)    o combate, implacável e sem trégua, aos três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir permanente, competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares civilizados, ou seja, próximos de zero; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de vária ordem; III – o desperdício, em todas as suas modalidades, também a ocasionar inestimáveis perdas e danos, inexoravelmente irreparáveis;

c)    a dívida pública brasileira, com projeção para 2014, segundo o Orçamento Geral da União, de exorbitante e intolerável desembolso de cerca de R$ 1 trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos (apenas com esta rubrica, previsão de R$ 654 bilhões), a exigir uma imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...

Destarte, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tão descomunal sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais contundente ainda, afeta a credibilidade de nossas instituições, negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à pátria, ao lado de abissais desigualdades sociais e regionais e de extremas e sempre crescentes necessidades de ampliação e modernização de setores como: a gestão pública; a infraestrutura (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos); a educação; a saúde; o saneamento ambiental (água tratada, esgoto tratado, resíduos sólidos tratados, macrodrenagem urbana, logística reversa); meio ambiente; habitação; mobilidade urbana (trânsito, transporte, acessibilidade); minas e energia; emprego, trabalho e renda; agregação de valor às commodities; sistema financeiro nacional; assistência social; previdência social; segurança alimentar e nutricional; segurança pública; forças armadas; polícia federal; defesa civil; logística; pesquisa e desenvolvimento; ciência, tecnologia e inovação; cultura, esporte e lazer; turismo; comunicações; qualidade (planejamento – estratégico, tático e operacional –, transparência, eficiência, eficácia, efetividade, economicidade, criatividade, produtividade, competitividade); entre outros...

São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que, de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta grande cruzada nacional pela cidadania e qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente participativa, justa, ética, educada, civilizada, qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que permita a partilha de suas extraordinárias e abundantes riquezas, oportunidades e potencialidades com todas as brasileiras e com todos os brasileiros. Ainda mais especialmente no horizonte de investimentos bilionários previstos e que contemplam eventos como a Copa do Mundo; a Olimpíada de 2016; as obras do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da era da globalização, da internacionalização das organizações, da informação, do conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um possível e novo mundo da justiça, da liberdade, da paz, da igualdade – e com equidade –, e da fraternidade universal...

Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...

O BRASIL TEM JEITO!...

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