quarta-feira, 13 de março de 2013

A CIDADANIA, O RESGATE DO ESPÍRITO E O VÉU DA VIRTUDE


“O resgate do espírito, apesar de sua exploração pela cultura atual

Na cultura atual, a palavra “espírito” é desmoralizada em duas frentes: na cultura letrada e na cultura popular.
Na cultura letrada dominante, “espírito” é o que se opõe à matéria. A ciência moderna se construiu sobre a investigação e a dominação da matéria. Penetrou até as suas últimas dimensões, as partículas elementares, até o campo Higgs, no qual se teria dado a primeira condensação da energia originária em matéria: os tão buscados bósons e hádrions e a chamada “partícula de Deus”. Einstein comprovou que matéria e energia são equipotentes. Matéria não existe. É energia altamente condensada e um campo riquíssimo de interações.
         Os valores espirituais situam-se na superestrutura e não cabem nos esquemas científicos. Seu lugar é o mundo da subjetividade, entregue ao arbítrio de cada um ou a grupos religiosos. Ou, então, pertence ao repertório do discurso eclesiástico moralizante, espiritualizante e em relação hostil com o mundo moderno.
         Em razão disso, a expressão “valores espirituais” surge com mais frequência na boca de padres e de bispos de viés conservador. Deles se ouve amiúde que a crise do mundo contemporâneo reside fundamentalmente no abandono do mundo espiritual. Mas, diante dos escândalos havidos nos últimos tempos com os padres pedófilos e dos financeiros ligados ao Banco do Vaticano, o discurso oficial dos “valores espirituais” se desmoralizou. Não perdeu valor, mas a instância oficial que os anuncia conta com muito pouca audiência.
         Na cultura popular, a palavra “espírito” possui grande vigência. Ela traduz certa concepção mágica do mundo, à revelia da racionalidade aprendida na escola. O espiritismo codificou essa visão de mundo pela via da reencarnação. Possui mais adeptos do que se suspeita.
         No entanto, nos últimos decênios, nos demos conta de que o excesso de racionalidade em todas as esferas e o consumismo exacerbado geraram saturação existencial e, também, muita decepção. A felicidade não se encontra na materialidade das coisas, mas em dimensões ligadas ao coração.
         Por toda parte, buscam-se experiências espirituais novas, sentidos de vida que vão além dos interesses imediatos e da luta cotidiana pela vida. Eles abrem uma perspectiva de iluminação e de esperança no meio do mercado de ideias e de propostas convencionais. Elas ganharam força através dos programas de TV e dos grandes “shows” religiosos. Numa sociedade de mercado, a religião e a espiritualidade  se transformaram também em mercadorias à disposição do consumo geral. E rendem muito dinheiro.
         Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio, embora, na maioria das vezes, na forma de esoterismo e de literatura de autoajuda. Mesmo assim, ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Nos meios cristãos emergiram as Igrejas pentecostais, os movimentos carismáticos e a centralidade da figura do Espírito Santo.
         Esses fenômenos supõem um resgate da categoria “espírito” num sentido positivo e até antissistêmico. O “espírito” constitui uma referência consistente e não mais colocada sob suspeita pela crítica da modernidade, que somente aceitava o que passava pelo crivo da razão. Ocorre que a razão não é tudo nem explica tudo. Há o irracional e o arracional. No ser humano, há o universo do sentimento, que se expressa pela inteligência cordial e emocional. O espírito não se recusa à razão, mas vai além, englobando-a num patamar mais alto. Em termos da nova cosmologia, ele seria tão ancestral quanto o universo, este, também portador de espírito. A era do espírito?”
(LEONARDO BOFF. Filósofo e teólogo, em artigo publicado no jornal O TEMPO Belo Horizonte, edição de 22 de fevereiro de 2013, caderno O.PINIÃO, página 18).

Mais uma importante e oportuna contribuição para o nosso trabalho de Mobilização para a Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 6 de março de 2013, caderno OPINIÃO, página 9, de autoria de FREI BETTO, que é escritor, autor de A mosca azul – reflexão sobre o poder (Rocco), entre outros livros, e que merece igualmente integral transcrição:

“O véu da virtude
        
         Nos próximos dias, a Igreja Católica terá novo papa. Até que ele seja eleito, os cardeais de 48 países estão reunidos em Roma debatendo, com certeza, os motivos que levaram Bento XVI a renunciar. Para a opinião pública, um gesto corajoso de humildade, sobretudo nesses tempos em que muitos políticos se julgam imortais e não concebem viver fora do poder. É o caso de Berlusconi, na Itália, que de novo busca ser primeiro-ministro, e de tantos políticos aqui no Brasil, acostumados a lotear a República e a tratar ministros e chefes de autarquias indicados por eles assim como um latifundiário trata seus capatazes.
         A Igreja é uma instituição de origem divina, mas formada por seres humanos que, a cada dia, devem orar “perdoai as nossas ofensas  e não nos deixeis cair em tentação”. Mas caem, e provocam escândalos, como os sucessivos casos de pedofilia.
         Quem conhece a história da Igreja sabe quantos abusos e crimes foram cometidos por ela em nome de Deus. Para citar apenas o caso do Brasil, durante o período colonial, bispos e padres se mostraram coniventes com a escravatura; a Inquisição caçou e cassou suspeitos, conduzidos daqui à prisão e à fogueira em Portugal; e a expressão “santo do pau oco” evoca o contrabando de ouro e diamante recheando as imagens devocionais levadas pelos clérigos ao exterior.
         O ser humano padece de duas limitações intransponíveis: prazo de validade (todos haveremos de morrer) e defeito de fabricação (trafegamos entre luzes e sombras). É o que a Bíblia chama de pecado original. Ao transpor sua origem divina ao caráter da instituição, a Igreja comete o erro de tentar cobrir com o véu da virtude os frutos do pecado. Por que chamar o papa de Sua Santidade se até ele é pecador e roga pela misericórdia de Deus? Por que qualificar de “sagradas” as congregações do Vaticano que atuam como ministérios de uma monarquia absoluta?
         Quanto maior a altura, maior o tombo. O véu da virtude rasgou-se diante dos escândalos de pedofilia mundo afora e, nesses dias, com a revelação da rede de prostituição que opera em Roma para oferecer serviços sexuais de seminaristas. Nada disso diminui o mérito de tantos membros da Igreja Católica que dão as suas vidas para que outros tenham vida, como é o caso dos bispos Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, José Maria Pires, e inúmeros padres e religiosos (as) que, despojados de ambições e conforto, se dedicam aos doentes, aos mais pobres, aos dependentes químicos, aos encarcerados.
         O grave é a Igreja não se abrir ao debate às candentes questões que concernem à condição humana. “Nada do que é humano é estranho à Igreja”, dizia o papa Paulo VI. Infelizmente, não é verdade. Criou-se em torno da sexualidade uma espessa cortina fechada pelo cadeado do tabu e do preconceito.
         Embora na prática o tema seja debatido no interior da instituição eclesiástica, a rigor está oficialmente proibido colocar em questão o celibato obrigatório; a ordenação de mulheres; o uso de preservativos para evitar Aids e outras doenças; a sexualidade por prazer (e não para procriar); o aborto em situações singulares; a união de homossexuais etc.
         O novo papa não poderá fugir dessas questões, sob pena de ver a Igreja esvaziar ou seguir convivendo com a hipocrisia de uma moral vivida pelos fiéis. Além de despir-se do véu da virtude, a Igreja deveria se perguntar que sentido faz o papado proclamar que a Igreja não se mete em política e, no entanto, o Vaticano arvorar-se em Estado soberano, com representação na ONU e núncios com embaixadores em diversos países.
         O papa merece ser apenas o pastor dos fiéis católicos, o bispo de Roma, que serve de parâmetro à comunhão universal na fé, e não um monarca absolutista com poderes de intervenção em todas as dioceses do mundo. O Concílio Vaticano II propôs à Igreja um governo colegiado, o que não foi implementado por Paulo VI nem aceito por João Paulo II e Bento XVI. A mosca azul parece picar também o papado. Essa “embriaguês da vitória”, como dizia Toynbee, fez com a cegueira impedisse o pontífice de evitar a corrupção no banco do Vaticano; o vazamento de documentos sigilosos na Cúria Romana; a traição de seu mordomo; e tantos outros escândalos que, agora, arranham profundamente a imagem da Igreja.
         Jesus não se fez acompanhar por um grupo de perfeitos ou santos. Pedro o negou, Tomé duvidou, Judas traiu, os filhos de Zebedeu ambicionaram o poder temporal. Nem eram todos castos e angélicos. No primeiro capítulo do evangelho de Marcos consta que Jesus curou a sogra de Pedro. Se tinha sogra é porque tinha mulher. Nem por isso deixou de ser indicado como líder da comunidade de apóstolos. Quem caminha sem salto alto tropeça menos. É hora de o papa calçar as sandálias do pescador, abdicar dos títulos honoríferos herdados do Império Romano e assumir, em colegiado com os cardeais de todo o mundo, o mais evangélico de todos os seus títulos: servo dos servos de Deus.”

Eis, portanto, mais páginas contendo importantes , graves e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise de liderança de nossa história – que é de ética, de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas educacionais, governamentais, jurídicas, políticas, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de modo a promovermos a inserção do País no concerto das potências mundiais livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente desenvolvidas...

Assim, urge ainda a efetiva problematização de questões deveras cruciais como:
     
     a)     a educação – universal e de qualidade, desde a educação infantil (0 a 3 anos de idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira série do ensino fundamental, independentemente do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação (especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade absoluta de nossas políticas públicas;
     b)    o combate, implacável e sem trégua, aos três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir uma permanente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares civilizados; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de variada ordem; III – o desperdício, em todas as suas modalidades, também a ocasionar inestimáveis perdas e danos, inexoravelmente irreparáveis;
     c)     a dívida pública brasileira, com projeção para 2013, segundo o Orçamento Geral da União, de astronômico e intolerável desembolso de cerca de R$ 1 trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos (apenas com esta rubrica, previsão de R$ 610 bilhões), a exigir uma imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...

Destarte, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tamanha sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais grave ainda, afeta a credibilidade de nossas instituições, negligenciando a justiça, a verdade, a honestidade e o amor à pátria, ao lado de extremas e sempre crescentes demandas, necessidades, carências e deficiências, o que aumenta o colossal abismo das desigualdades sociais e regionais e nos afasta num crescendo do seleto grupo dos sustentavelmente desenvolvidos...

São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que, de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta grande cruzada nacional pela cidadania e qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente justa, ética, educada, civilizada, qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que permita a partilha de suas extraordinárias e generosas riquezas, oportunidades e potencialidades com todas as brasileiras e com todos os brasileiros, especialmente no horizonte de investimentos bilionários previstos e que contemplam eventos como a 27ª Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro em julho; a Copa das Confederações em junho; a Copa do Mundo de 2014; a Olimpíada de 2016; as obras do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da era da globalização, da internacionalização das empresas, da informação, do conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um possível e novo mundo da justiça, da liberdade, da paz, da igualdade – e com equidade –, e da fraternidade universal...

Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...

O BRASIL TEM JEITO!...

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