“Homem,
Estado e democracia
Talvez o maior dilema
doutrinário nos chamados regimes democráticos de direito reside da hierarquia,
na resultante de poder do que se convencionou chamar de equação homem x Estado.
O âmago dessa perplexidade mora na ideia de que é impositiva uma hierarquização
entre as vontades, interesses e expectativas de um e de outro. O embate entre
eles, inevitável , torna imperativa a supremacia do Estado sobre o indivíduo.
Isso, inegavelmente, põe em cheque os próprios valores da democracia a qual é
um regime de liberdades e não de restrições ou hierarquias. Uma questão que se
coloca está em examinar como se forma o que se chama aqui de “vontade do
Estado”. Acaso ela não seria a expressão da vontade dos indivíduos que ocupam o
Estado? E, nessa perspectiva, não seria inescapável que o conflito dessas
vontades reduz-se a um conflito de vontades, grupais ou individuais? Ou seja, o
indivíduo (ou grupo) desvestido das prerrogativas de Estado “versus” o
indivíduo (ou grupo) investido dessas prerrogativas?
O
Estado não é um animal, alma autônoma
afastada do homem, mas criação dos homens e composta por homens. Dessa forma,
não há uma lógica plausível no pensamento de que sua simples existência
signifique a prevalência de suas “vontades” sobre as vontades, expectativas e
interesses do cidadão que conflitem com
as do Estado. Nesse núcleo, nem há diferença entre os regimes totalitários ou
liberais: a distinção é, ou de ênfase, ou de modelos de seleção dos homens do
Estado, apenas.
A
partir do modelo de Karl Loewenstein pode-se avançar nesse tema. Para ele, um
poder transcende ao próprio Estado (policy
determination) o instituiria, segundo cláusulas definidas numa
constituição. Ao Estado, criado segundo os contornos estabelecidos nessa
determinação, caberia o exercício do que chamou de policy execution (execução) e de policy control (controle).
Ao contrário do modelo vertical de Montesquieu, os poderes do Estado não
estariam necessariamente formalizados em estruturas burocráticas autônomas. A
proposição de Loewenstein é material. Assim, haveria execução indistintamente
nos poderes Executivo e Legislativo. E controle no Judiciário. A determinação é
como que o sopro de Deus; dá vida ao Estado, institui suas características,
seus poderes e esvanece. Ao concentrar na determinação toda a fonte de
autoridade e hierarquia do Estado sobre o indivíduo, o modelo faz crer que essa
autoridade não reside no Estado real, cotidiano. Ao Estado cabe, apenas e tão
somente, realizar os modelos hierárquicos e de supremacia que lhe foram
impostos. O Estado não é fonte da hierarquia, mas estrutura para sua
realização.
O
simples deslocamento da hierarquia para aquilo que os kantianos chamariam de
metajuridicidade não resolve a questão. A execução impõe, de per si, o estabelecimento do que eu
chamo de micro-determinação. Os burocratas, inclusive os da execução, têm um
modo próprio de interpretar e aplicar as regras de direito com que o deus
determinação os ungiu. E não há, necessariamente, coincidência nessas ações,
colocados o homem e o Estado diante delas. E, em vista dessa “descoincidência”,
sempre haverá espaço para o cidadão confrontar as decisões do burocrata.
Assim,
o problema da hierarquia na equação homem x Estado encontra-se apenas
aparentemente isolado dos mecanismos da ação diuturna de um e de outro. A
determinação não apazigua toda a miríade de conflitos que brota da
interpretação entre o homem e a execução da norma jurídica. Na verdade, a
determinação parece propor conflitos. E tanto assim é que a própria existência
do controle político evidencia o conflito inerente à sua execução.
Cabe
aqui divagar, no sentido de que o controle não se resume a controle de
legalidade do ato estatal. Isso é bem pouco. Afastado o rigor formalista dos
kantianos, o Estado é muito mais que a norma jurídica institucionalizada. A
chamada política do direito (no dizer de Kelsen) diz muito mais perto aos
interesses do cidadão do que a fria letra da lei.
O que
se pode depreender, a partira da informalidade do trio de Loewenstein, é que
nem é necessário que o controle resida exclusivamente na burocracia estatal. É
de se sugerir que ele também está nas ruas, no cidadão ao qual o estado diz
servir. Sob o aspecto formal (eleições) ou informal (protestos) é fora de
questão o enorme poder que reside nessa instância. De fato, ainda que se
mantenha a determinação incólume, é aceitável, seja pela alternância de poder
protagonizada a partir das eleições, seja pela revisão da ação do estado
decorrente dos protestos, que haja um sensível “tranco” na ação do Estado. E
isso sem ruptura institucional. Sem fraturar a determinação.
Portanto,
é ingênuo e precipitado imaginar-se que a “voz das ruas” seja prenúncio de
inevitável ruptura institucional. Pelo contrário, como mecanismo de controle, é
um dos elementos da sociedade organizada capaz de impor uma saudável revisão na
execução.
O
pensamento padrão considera que a estrutura burocrática do Estado haverá de
conter todos os “poderes” que atuam no cotidiano das democracias. Eis o
equívoco. E, quem sabe, o germe maldito da própria ruptura institucional: a
incapacidade de compreender que o controle (tal como a determinação o é,
sempre) pode muito bem interferir desde “fora” do Estado. E ser respeitado como
tal.”
(CAIO
BOSON. Advogado especialista em direito
público e sócio de Boson &
Associados, Advogados, em artigo publicado no jornal ESTADO DE MINAS, edição de 21 de fevereiro de 2014, caderno DIREITO & JUSTIÇA, página 8).
Mais uma importante e oportuna contribuição para o
nosso trabalho de Mobilização para a
Cidadania e Qualidade vem de artigo publicado no mesmo veículo, edição,
caderno OPINIÃO, página 9, de
autoria de DOM WALMOR OLIVEIRA DE
AZEVEDO, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, e que merece igualmente
integral transcrição:
“Dignidade
e delinquência
Os cenários nas
sociedades contemporâneas merecem atenção e tratamento especial por parte de
todos, particularmente das lideranças políticas, governamentais e religiosas.
Esses cenários estão marcados pela banalização crescente da dignidade humana,
que favorece atos de delinquência, trazendo prejuízos irreversíveis. A perda do
sentido autêntico da pessoa tem sido um vetor determinante do esvaziamento da
consciência individual e coletiva. Aí está uma incontestável e perene fonte da
violência, da corrupção e dos mais diversos tipos de manipulações – de coisas,
instituições e pessoas.
A
gravidade dessa situação atinge o núcleo da consciência moral que deve
sustentar cada pessoa no desabrochamento de sua conduta, pautada no mais
relevante sentido de respeito ao outro. No coração humano há uma lei inscrita
pelo próprio Deus, no fundo da própria consciência. É uma lei que o homem não
impôs a si mesmo, mas à qual ele deve obedecer, como uma voz que estão
chamando-o ao amor, ao bem. Quando o indivíduo perde a competência para ouvir
essa voz, se encontra às portas do mal. A perda e esvaziamento da consciência
moral são, pois, o impulso determinante que faz nascer o delinquente.
Criminosos,
dos mais variados tipos, escutam outra voz que determina a submissão
interesseira à idolatria do dinheiro, ao entendimento do prazer como fonte de
manipulação e lucro. Essa voz alimenta a ganância que inaugura a cada momento
uma corrida desenfreada, pautada na disputa, que faz de cada um inimigo do
outro. Essa delinquência está nas violências de todo tipo, inclusive nos
radicalismos políticos e fundamentalismos religiosos, arregimentando muita
gente aos extremos, equivocada e lamentavelmente convencida de estar mais
próxima da verdade, sentindo-se no direito de produzir, segundo seus critérios,
os ordenamentos necessários, e a implantação de uma justiça que é cega e
incapaz de estabelecer a verdadeira dignidade que configura e define a pessoa.
O
princípio sagrado e intocável da dignidade humana não permite que cada pessoa
se pense como absoluta, edificada por si mesma, sobre si mesma e de si mesma
dependente. A sociedade contemporânea está sendo levada por dinâmicas que estão
alimentando reducionismos muito perigosos. Isso compromete o entendimento do
sentido da dignidade, gera um enfraquecimento da fraternidade e incapacita para
a solidariedade. Lamentável é o entendimento da consciência moral com a simples
função de aplicação de normas gerais aos casos individuais da vida. A
decomposição da consciência moral deve inspirar uma “trincheira” guerreando por
sua recuperação. No caminho oposto,
corre-se o risco de se produzir colapsos em série que inviabilizarão o futuro
das sociedades. Crescerão as barbáries e os descompassos regerão a vida
cotidiana, que se tornará, impulsionada pelo frenesi da vida moderna e das
ganâncias, um lento suicídio coletivo, atingindo as culturas, tradições e
pessoas.
É
preciso eleger como prioridade a permanente recomposição da consciência moral
individual e comunitária. O inadequado tratamento dessa primazia é a produção
de delinquências praticadas tanto por “engravatados” quanto por “maltrapilhos”.
Deve-se investir, de modo sério e profundo, em toda a esfera psicológica e
afetiva de cada pessoa, bem como nos múltiplos contextos do ambiente social e
cultural. Esse investimento, portanto, há de ter cada pessoa como destinatária.
Seu encaminhamento concreto indica que o conjunto da sociedade precisa ser
mapeado e tratamentos específicos precisam ser disponibilizados. Assim será
possível alcançar um processo educativo e de recuperação dessa consciência
moral perdida. Esse mapeamento se desdobra em vários capítulos, cada um com a
tarefa de sensibilizar e buscar contribuições para resgatar e qualificar a
cidadania..
Capítulo
determinante desse processo são as reflexões sobre a realidade carcerária do
Brasil, com seus 500 mil presos, em condições de contínua e acentuada perda da
consciência moral, em razão das dinâmicas e das condições dos presídios. Uma
realidade que envolve muitas situações, de diferente matizes, e gera grande
preocupação pelo que se está produzindo. O sistema prisional tem feito surgir
contextos inadequados, atingindo famílias, presos que não deveriam estar no
cárcere e até aqueles de alta periculosidade. Uma situação que se agrava diante
da grande comunidade atingida por compreensões equivocadas ou ineficazes sobre
a prioridade de recuperar pessoas, permitindo-lhes recompor a consciência
moral.
Esse
capítulo, entre outros mapeamentos que a sociedade brasileira precisa considerar,
é prioridade do Vicariato Episcopal para Ação Social e Política da Arquidiocese
de Belo Horizonte, com sua Pastoral Carcerária, e de experiências exitosas como
as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), instituições
que estão em diálogo com a sensibilidade social e comprometimento da ministra
Cármem Lúcia Antunes, do Supremo Tribunal Federal. Um trabalho necessário pela
certeza de que o Estado precisa de ajuda. É preciso o envolvimento de
instituições especializadas em humanidade para recuperar dignidades e superar
delinquências.”
Eis, portanto, mais páginas contendo importantes,
incisivas e oportunas abordagens e reflexões que acenam, em meio à maior crise
de liderança de nossa história – que é de ética,
de moral, de princípios, de valores –, para a imperiosa e urgente necessidade de profundas mudanças em nossas estruturas
educacionais, governamentais, jurídicas,
políticas, sociais, culturais, econômicas, financeiras e ambientais, de
modo a promovermos a inserção do País no concerto das potências mundiais
livres, civilizadas, soberanas, democráticas e sustentavelmente
desenvolvidas...
Assim, urge ainda a efetiva problematização de
questões deveras cruciais como:
a) a
educação – universal e de qualidade –, desde
a educação infantil (0 a 3 anos de
idade, em creches; 4 e 5 anos de idade, em pré-escolas) – e mais o imperativo
da modernidade de matricularmos nossas crianças de 6 anos de idade na primeira
série do ensino fundamental, independentemente
do mês de seu nascimento –, até a pós-graduação
(especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado), como prioridade absoluta de nossas políticas
públicas;
b) o
combate, severo e sem trégua, aos
três dos nossos maiores e mais avassaladores inimigos que são: I – a inflação, a exigir permanente,
competente e diuturna vigilância, de forma a manter-se em patamares
civilizados, ou seja, próximos de zero; II – a corrupção, como um câncer a se espalhar por todas as esferas da
vida nacional, gerando incalculáveis prejuízos e comprometimentos de variada
ordem (por exemplo, as barbáries, as violências, as delinquências que vão
aflorando nas sociedades contemporâneas); III – o desperdício, em todas as suas modalidades, também a ocasionar
inestimáveis perdas e danos, inexoravelmente irreparáveis;
c) a
dívida pública brasileira, com
projeção para 2014, segundo o Orçamento Geral da União, de exorbitante e
intolerável desembolso de cerca de R$ 1
trilhão, a título de juros, encargos, amortização e refinanciamentos
(apenas com esta rubrica, previsão – revisada – de R$ 654 bilhões), a exigir
uma imediata, abrangente, qualificada e eficaz auditoria...
Destarte, torna-se absolutamente inútil lamentarmos a falta de recursos diante de tão
descomunal sangria que dilapida o nosso já combalido dinheiro público, mina a
nossa capacidade de investimento e de poupança e, mais contundente ainda, afeta
a credibilidade de nossas instituições, ao lado de abissais desigualdades
sociais e regionais e de extremas e sempre crescentes necessidades de ampliação e modernização de setores
como: a gestão pública; a infraestrutura (rodovias, ferrovias,
hidrovias, portos, aeroportos); a educação;
a saúde; o saneamento ambiental (água tratada, esgoto tratado, resíduos
sólidos tratados, macrodrenagem urbana, logística reversa); meio ambiente; habitação; mobilidade urbana
(trânsito, transporte, acessibilidade); minas e energia; emprego, trabalho e renda; agregação de valor às
commodities; sistema financeiro nacional; assistência social; previdência
social; segurança alimentar e nutricional; segurança pública; forças armadas;
polícia federal; defesa civil; logística; pesquisa e desenvolvimento; ciência,
tecnologia e inovação; cultura, esporte e lazer; turismo; comunicações;
qualidade (planejamento – estratégico, tático e operacional –,
transparência, eficiência, eficácia, efetividade, economicidade, criatividade,
produtividade, competitividade); entre outros...
São, e bem o sabemos, gigantescos desafios mas que,
de maneira alguma, abatem o nosso ânimo nem
arrefecem o nosso entusiasmo e otimismo nesta
grande cruzada nacional pela cidadania e
qualidade, visando à construção de uma Nação verdadeiramente justa, ética, educada, civilizada,
qualificada, livre, soberana, democrática, desenvolvida e solidária, que
possa partilhar suas extraordinárias e abundantes riquezas, oportunidades e
potencialidades com todas as
brasileiras e com todos os
brasileiros. Ainda mais especialmente no horizonte de investimentos bilionários
previstos e que contemplam eventos como a Copa do Mundo; a Olimpíada de 2016;
as obras do PAC e os projetos do pré-sal, à luz das exigências do século 21, da
era da globalização, da internacionalização das organizações, da informação, do
conhecimento, da inovação, das novas tecnologias, da sustentabilidade e de um
possível e novo mundo da justiça, da
liberdade, da paz, da igualdade – e com
equidade –, e da fraternidade
universal...
Este é o nosso sonho, o nosso amor, a nossa luta, a
nossa fé, a nossa esperança... e perseverança!...
O
BRASIL TEM JEITO!...